Incidente em Krabi
O motorista era tailandês, só sabia de inglês três palavras
básicas: you, in, out.
O sujeito amontoara mochilas e malas espremidas no corredor de tal forma que
mal cabiam as pernas dos passageiros, e alguns tiveram de carregar sua bagagem
no colo.
Ele desconhecia as palavras hotel, resort e mesmo os nomes internacionais como
President e Excelsior; quando o turista explicava que ia ficar no Hotel
President, ele lia o voucher a gritava nomes em tailandês que ninguém entendia
nem conseguia repetir, o que o deixava cada vez mais zangado, e a nós, cada vez
mais assustados.
A cada cinco minutos,
o motorista parava, lia a etiqueta colorida pregada em nossa roupa, arrancava o
voucher de nossa mão para ler o nome do hotel, jogava uma mala para fora e
praticamente atirava o desamparado turista no meio do nada, apontando direto
para a mata, para onde seguia em passos incertos o infeliz, rezando para chegar
em segurança a seu destino.
Pois foi em alguma curva no meio da paisagem que as três mochileiras surgiram,
literalmente, do nada, e acenaram para o ônibus. As garotas eram asiáticas e
cacarejavam um inglês horroroso.
O diálogo, passado em frente a vinte pessoas de vinte etnias diferentes, foi,
portanto, dito e compreendido por gestos e pelo contexto, e completado com a imaginação, o que dá maior
dramaticidade aos fatos.
As moças subiram no veículo com seus talões de passagem,
dizendo que ficariam em qualquer lugar em Krabi. O motorista ficou zangado:
- Vocês não tem reserva? Que espécie de turista maluco sai de casa sem reserva
de hotel?
Todos ali eram mochileiros. Todos tinham reservas.
- A gente não tem muito dinheiro. Qualquer hotel simples serve.
- E vocês acham que o hotel está vazio esperando vocês chegarem? Vocês são
loucas?.
Ficou claro que o motorista não ia sair do lugar sem que as moças dessem a ele
um endereço. Também ficou claro que elas tinham tão pouco dinheiro que os
preços dos hotéis que mostrávamos a elas, ansiosos para que se decidissem, para
que todos prosseguiessemos a viagem, estavam além de suas posses.
O norueguês resolveu o problema gritando: - Center! - e mostrando ao motorista o
centro de Krabi em seu GPS.
As garotas reclamaram, pois ficariam longe da praia, e,
enquanto o veículo seguia sacolejando, nos bancos atrás a confusão de Babel
estava armada. A nossa prioridade era descer o quanto antes daquele veículo
estranho, a delas era escolher de última hora o que todos tínhamos escolhido
com semanas de antecedência.
O motorista parou uma vez mais para jogar o indiano no meio
do nada, antes de prosseguir. As mocinhas olharam assustadas para o cenário
desolador, caíram em si e se acalmaram. Desceram comportadamente no centro de
Krabi, onde, se não encontrassem hotel, pelo menos haveria gente a quem
perguntar, e lugar onde comer.
O casal de ingleses, idosos, assistia a tudo sem perder a classe. Foram os
únicos a serem entregues no conforto de uma recepção, pois iam a um resort. Nós
outros, turistas classe econômica, seguíamos pela orla da mata, sem GPS, sem
guia, apenas com a esperança de encontrar no fim da trilha uma dessas praias
belíssimas, onde, se encontrados em má hora por um tsunami, teríamos ao menos a
sensação de morrer ao entrar no paraíso.
O barqueiro
Éramos duas turistas aventureiras em Kho Pee Pee, duas
mulheres sozinhas em um país cuja língua não falávamos.
Neste arquipélago, ao criar o mundo, Deus deve ter hesitado.
Ali deveria ter sido o paraíso original, e ali, certamente, Eva, ocupada a se
divertir nas águas mornas cheias de peixinhos coloridos, teria mandado a
serpente passear, em nada curiosa pelos frutos proibidos, mesmo porque por ali
nascem frutas bem mais interessantes que maçãs. Talvez por isso o divino mestre
guardasse este local para deleite das futuras gerações de netinhos do bíblico
casal. Afinal, não tendo nada a ver com o pecado de nossos ancestrais, nada
mais justos que nós nos deleitemos, quando o salário permite, em locais
paradisíacos.
Bem, a população é outra coisa, e, a princípio, não me
pareceu tão paradisíaca assim.
Nosso barqueiro, por exemplo. O tailandês era feio, magro,
desdentado. Em São Paulo,
eu atravessaria a rua para não cruzar com ele. No entanto, minha amiga insistiu
no tal passeio de ‘bote de cauda’, praticamente uma casquinha, que por ser
pequena, pode se aproximar de qualquer prainha, esgueirar-se por entre
quaisquer recifes, e na qual teríamos a sensação dos navegantes primitivos a
singrar os mares em busca de aventuras.
Minha amiga, já se vê, é escritora. Eu, que a acompanho em
suas maluquices, desconfio ter propensão ao suicídio. E disse a ela,
alegremente, que, se um tsunami nos surpreendesse ali, morreríamos sorrindo, e
que, sendo todos nós condenados a morrer um dia, por que não escolher Kho Pee Pee
como cenário?
Voltemos a nosso medonho barqueiro, que nem de longe
desconfiava do pavor que me provocava seu desdentado sorriso. Ele ajeitou à
sombra nossa água, e nos guiou oceano adentro em seu barquinho frágil, por
ilhas paradisíacas.
Saímos cedo, e, na maioria das baías e remansos, fomos as
primeiras visitantes do dia, tendo a paisagem só para nós. Ele nos orientava
aonde ir, onde mergulhar, onde aportar.
Eu, tensa, não parava de pensar que, se ele resolvesse nos matar e jogar nossos
corpos ao mar, ninguém saberia. E em meu pensamento vinham histórias terríveis
de turistas desaparecidos, assassinados pelos guias. Minha própria cidade,
sendo turística, tinha uma crônica de assaltos capaz de alimentar os pesadelos
mais estupendos, brutais, apavorantes. E eu ali, estressada, ao lado da minha
felicíssima e relaxada amiga, que, em um remanso entre penhascos isolados,
mergulhou entre um cardume de coloridos peixinhos, a procurar por Nemo.
O barqueiro, que me convidava em vão a descer do barco, cruzou os braços e
olhou para o alto dos penhascos, onde, observei , havia milhares de ninhos de
andorinhas. O sol parcialmente encoberto deixava uma parte da baía na sombra, e
a outra parte, dourada. A água transparente permitia que se enxergasse cada
detalhe das pedrinhas do fundo, que, naquele local, era pouco profundo, e azul
como as águas dos atóis. Enquanto eu me indagava se estávamos sobre pedras ou
corais, debrucei-me, relaxei, mergulhei as mãos na água, e, então, para meu
terror, o barqueiro aproximou-se, acocorou-se diante de mim, olhou dentro de
meus olhos e sorriu:
- Este mundo é tão lindo!
O tom com que ele disse esta simples frase foi tão
inesperado que me desarmei.
- Eu venho aqui todos os dias – continuou ele – Todos os
dias vejo este mundo bonito. Eu amo meu trabalho.
A alegria dele me contagiou e fiquei de repente muito
tranquila, e pude sentir o silêncio por detrás do som do mar, do vento, do som
dos pássaros.
Eu me senti tão bela e pura como a paisagem ao redor, e
cheia de ternura por ele, por minha amiga, e até mesmo desculpei-me pela tola
pessoa que sou.
Este homem me ensinou
a felicidade.